DIÁLOGOS DE UM JUDEU DO SÉC XXI COM SPINOZA
POR
ROBERTO LEON PONCZEK*
POR
ROBERTO LEON PONCZEK*
Depois de um longo vôo do Rio de Janeiro até Amsterdam pernoitei
num hostel de estudantes à beira do
grande canal, onde aluguei um minúsculo quarto, no qual mal cabiam a cama e uma
cadeira, menor até que aqueles que Van
Gogh costumava pintar; a janela era uma
escotilha de navio que só abria alguns centímetros para fora, dando vista para
um pátio interno onde jovens jogavam videogames. No dia seguinte, pela manhã,
já refeito do longo vôo, mas ainda “comfuso” horário, depois de atravessar de
balsa o canal que separa o bairro Noord do resto de Amsterdam, caminhei para a
estação de trem e embarquei para uma jornada até Leyden, passando pelas
cultivadas planícies baixas da Holanda, da janela vi seus famosos campos de
girassóis que acompanham a trajetória do sol, que ainda brilhava apesar de que já
estávamos no fim do outono.
Desci na estação da famosa cidade de Leyden, onde se descobriu o
princípio do capacitor elétrico através de um artefato denominado de “garrafa
de Leyden”, inventada acidentalmente em 1746 por um certo Pieter van Musschebroek, professor da Universidade de
Leyden, que armazena eletricidade em quantidade suficiente para
provocar fortes descargas elétricas. De Leyden embarquei num ônibus que me
levaria até o vilarejo de Rjnsburg, passando pela bela universidade onde se
descobriu a garrafa, e cerca de meia hora depois, chego a Rynsburg, perguntando
a um simpático jovem holandês onde ficava a Spinoza
Huis, e este me informou que ainda restava-me fazer uma caminhada de cerca
meia hora até meu destino. Caminhei por ruas vazias, ladeadas por belas
casinhas tipicamente holandesas que pareciam desabitadas. Ninguém por perto
para confirmar a informação anterior. Seguindo as instruções recebidas, foi com
grande emoção que avistei de longe a Spinoza
Huis, o modesto casebre de tijolos aparentes que já conhecia de fotos,
finalmente entrando na pequena casa do judeu
excomungado Baruch Spinoza, que me ensinou a conhecer um Deus bastante
diferente do que havia conhecido na Sinagoga.
Fui recebido com muita gentileza por uma senhora holandesa com a qual consegui me comunicar em inglês. Expliquei-lhe que vinha do Brasil especialmente para conhecer o casebre onde Spinoza viveu. Ela me conduziu por uma estreita escadaria que levava ao sótão quase rente ao telhado que na forma de um agudo V invertido parecia ser uma água furtada.
Fui recebido com muita gentileza por uma senhora holandesa com a qual consegui me comunicar em inglês. Expliquei-lhe que vinha do Brasil especialmente para conhecer o casebre onde Spinoza viveu. Ela me conduziu por uma estreita escadaria que levava ao sótão quase rente ao telhado que na forma de um agudo V invertido parecia ser uma água furtada.
Neste exíguo espaço Spinoza, depois de expulso da Sinagoga
Portuguesa de Amsterdam, vivia seu exílio lendo, estudando e polindo suas
lentes num tosco torno de madeira movido por cordas acionadas por uma manivela.
Aí viveu frugalmente o homem que foi banido por todas as religiões, inclusive a judaica, sendo excomungado pelo rabino Saul Morteira com quem estudara para ser ele próprio rabino e depois se desentendera por se negar a interpretar as profecias como revelações divinas. De fato, ele as percebia como discursos humanos, escritas com sintaxes e idiossincrasias lingüísticas próprias de um hebraico de épocas datadas, entrando em rota de colisão com o misticismo exacerbado de uma comunidade de assustados marranos1 sefarditas2 fugidos da inquisição portuguesa. E hoje ele é considerado o pensador que tornou o conceito de Deus inteligível até para os mais cépticos cientistas. "O Deus que acredito é o Deus de Spinoza, aquele que representa o equilíbrio e a Harmonia de todas as coisas, e não aquele que se ocupa em vigiar ou punir o que fazem os homens" - dizia Albert Einstein. Abracei carinhosamente seu busto de bronze marcado por pátinas do tempo e perguntei-lhe porque Deus não era o Criador como aprendemos na Torah e nas nossas rezas na Sinagoga. “Deus não é criador das coisas, simplesmente porque cada coisa desde uma prosaica pedra ao ser humano é um modo finito de ser de Deus - disse-me ele num português arcaico como falado por Camões. “Deus é a Natureza Naturante em ato continuo de existência e transmutação em seus infinitos modos de ser” – continuou ele a falar . “A essência de Deus envolve a sua existência” o que equivale a dizer que Deus existe necessária e suficientemente porque É, - explicou-me em seu belo sotaque lusitano aprendido, ainda no berço, com sua mãe, a judia portuguesa Hannah Débora Gomes Garcez.
Aí viveu frugalmente o homem que foi banido por todas as religiões, inclusive a judaica, sendo excomungado pelo rabino Saul Morteira com quem estudara para ser ele próprio rabino e depois se desentendera por se negar a interpretar as profecias como revelações divinas. De fato, ele as percebia como discursos humanos, escritas com sintaxes e idiossincrasias lingüísticas próprias de um hebraico de épocas datadas, entrando em rota de colisão com o misticismo exacerbado de uma comunidade de assustados marranos1 sefarditas2 fugidos da inquisição portuguesa. E hoje ele é considerado o pensador que tornou o conceito de Deus inteligível até para os mais cépticos cientistas. "O Deus que acredito é o Deus de Spinoza, aquele que representa o equilíbrio e a Harmonia de todas as coisas, e não aquele que se ocupa em vigiar ou punir o que fazem os homens" - dizia Albert Einstein. Abracei carinhosamente seu busto de bronze marcado por pátinas do tempo e perguntei-lhe porque Deus não era o Criador como aprendemos na Torah e nas nossas rezas na Sinagoga. “Deus não é criador das coisas, simplesmente porque cada coisa desde uma prosaica pedra ao ser humano é um modo finito de ser de Deus - disse-me ele num português arcaico como falado por Camões. “Deus é a Natureza Naturante em ato continuo de existência e transmutação em seus infinitos modos de ser” – continuou ele a falar . “A essência de Deus envolve a sua existência” o que equivale a dizer que Deus existe necessária e suficientemente porque É, - explicou-me em seu belo sotaque lusitano aprendido, ainda no berço, com sua mãe, a judia portuguesa Hannah Débora Gomes Garcez.
- E o que são os atributos de Deus? – insisti. “São as formas com que entende-se e
percebe-se Deus, e elas são duas: a extensão e o pensamento” .
- Isso significa que
podemos perceber Deus através da nossa percepção do mundo material assim como podemos
entendê-lo através das idéias que temos acerca dele? – perguntei-lhe
triunfalmente como se tivesse entendido sua definição e ele assentiu com a
cabeça.
– Então Deus só possui dois atributos? – arrisquei. - Claro que não! Exclamou ele de forma
quase irritada. “Nós humanos só O
entendemos através dessas duas formas de entendimento, mas Deus possui
infinitos outros atributos infinitos que não nos são perceptíveis! Lembre-se
que somos apenas um modo de existência de Deus! – concluiu ele com um tom
mais professoral, como se falasse com um de seus alunos.
Pensei então em voz baixa, sem coragem para
externar-me diante de tão severo mestre, que o universo tal qual o percebemos
pelos atributos dos sentidos e da razão é apenas uma das infinitas
possibilidades de percepção dentre infinitas existências de outros universos
para nós inacessíveis e incompreensíveis.
Lembrei-me então das aulas de Kabalah
que tive com Rabino Ysrael Bukiet no Beit Chabad em Salvador. Dizia-me ele que
um Deus infinito para criar um Universo finito teve que se contrair desde a sua
infinitude para a finitude da matéria. Essa contração a Kabalah designa por tzintzum.
E nós humanos só percebemos Deus através das tzimtzum, como uma tênue luz que transpassa várias cortinas
sobrepostas. Ficaríamos cegos se olhássemos diretamente para Deus sem esses
anteparos ligeiramente translúcidos que filtram sua infinitude. Percebemos
apenas palidamente Deus depois das tzintzum,
ou seja, o percebemos depois de suas diversas contrações ao
passar por cortinas filtrantes de seu infinito esplendor. Senti-me encorajado
para perguntar a Spinoza se os atributos seriam as tzimtzum da Kabalah, mas a prudência mandou-me calar...
Pedi-lhe licença e fui visitar o restante de sua pequena casa.
Consultei a lista de presença e verifiquei a visita de Albert Einstein from Berlin
no caderno aberto
sobre a mesa. Aproveitei para também deixar meu
registro e assinei “Roberto Ponczek from
Rio de Janeiro”.
Consultei sua pequena biblioteca e também algumas edições de seus livros expostas num balcão de vidro. Lá pude constatar que o livro Renati Des Carti, Principiorum Philosophie e Cogitata Metaphysica foi publicado ainda em sua vida, onde ele se designou como Benedictum de Spinoza, que corresponde à latinização de seu nome hebraico original Baruch3 de Espinoza, assim como René Descartes foi latinizado para Renatus Cartesius ou Renati Des Cartis. Pensei se esse seu novo nome latinizado não seria uma forma de Spinoza tentar romper totalmente com seu passado judaico.
Consultei sua pequena biblioteca e também algumas edições de seus livros expostas num balcão de vidro. Lá pude constatar que o livro Renati Des Carti, Principiorum Philosophie e Cogitata Metaphysica foi publicado ainda em sua vida, onde ele se designou como Benedictum de Spinoza, que corresponde à latinização de seu nome hebraico original Baruch3 de Espinoza, assim como René Descartes foi latinizado para Renatus Cartesius ou Renati Des Cartis. Pensei se esse seu novo nome latinizado não seria uma forma de Spinoza tentar romper totalmente com seu passado judaico.
Desci as estreitas escadas e no andar térreo consultei alguns
manuscritos e sua pequena biblioteca. Chamou-me a atenção uma carta do primeiro
Primeiro Ministro de Israel, David Ben Gurion, datada de 1956, dirigida a um
certo H. F. K. Duglas, então diretor da Spinoza Huis, que ora traduzo:
Prezado Sr. Duglas,
Existe um pequeno engano em sua carta. No meu artigo eu não pedi
para anular a excomunhão de Spinoza porque tomei como certo que esta excomunhão
há muito já está anacrônica e nula. O
que pedi foi que a Universidade Hebraica de Jerusalém publique sua obra
completa em hebraico, considerando-o o mais profundo pensador dos últimos
séculos. E isso já está sendo feito pela citada universidade.
Em Tel Aviv já há uma rua com seu nome e não existe neste país
nenhuma pessoa razoável que pense que a excomunhão deveria estar ainda em
vigor.
Gostaria que me informasse quais são as despesas para a manutenção
do túmulo de Spinoza para que eu possa informá-lo qual será a nossa
contribuição.
Respeitosamente,
Imediatamente ao ler essa carta corri de volta ao busto de
Spinoza, dei-lhe um forte abraço e disse-lhe:
- Baruch, estas vendo que nós judeus esclarecidos te amamos e te
consideramos um dos maiores pensadores de todos os tempos. Esquece esta
ridícula excomunhão proferida por uma comunidade de judeus portugueses
limitados, fanáticos e embrutecidos por séculos de perseguições e que jamais te
poderiam entender, pois estavas muito à frente de tua época. Vê que no sec. XX
o dirigente máximo de Israel, David Ben Gurion, considera nula a excomunhão a
que te submeteram teus correligionários de Amsterdam e deu até o teu nome para
uma das ruas de Tel Aviv, cidade nova que não conheceste. A tua obra completa
já foi traduzida para a língua das Escrituras que tão bem conheces!
Espero que te sintas
abraçado por um judeu do séc. XXI.
Baruch
Ha Shem4,
De
um modesto estudioso de tua obra,
Roberto
Leon Ponczek
1 marranos - termo que
significa porcos em árabe e como eram
designados os judeus convertidos ao
cristianismo e/ou que praticavam o Judaísmo ocultamente.
2 sefarditas ou
sefaraditas são os judeus portugueses, espanhóis ou do norte da África em
oposição aos ashquenazitas, judeus da Europa Central ou do Leste europeu.
3 Baruch em hebraico
significa Bendito ou Bento.
4 Baruch Ha Shem
significa literalmente Bendito o Seu Nome, os judeus a expressam para exclamar Graças a Deus!
*Roberto Leon Ponczek é Mestre em Física Nuclear pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professor de Física concursado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor Adjunto IV da UFBA. É doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia, membro dos grupos de trabalho Benedictus Spinoza e Filosofia do séc. XVII da Anpof e Prof. Permanente no Doutorado Multidisciplinar de Difusão do Conhecimento, onde orienta vários alunos de Doutorado, lecionando as disciplinas Epistemologia e Seminários de Tese. Possui vários trabalhos publicados sobre a filosofia de Spinoza, além de participações em encontros e congressos de Filosofia da Ciência e Educação. É autor dos livros Os crocodilos guardiões e a Biblioteca da Babilônia: manhas, artimanhas e imposturas acadêmicas, publicado recentemente pela CRV e Deus ou seja a Natureza: Spinoza e os novos paradigmas da Física pela EDUFBA. Dedica-se atualmente a construir uma pedagogia da ciência, inspirada nas filosofias de Einstein e Spinoza..
*Roberto Leon Ponczek é Mestre em Física Nuclear pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professor de Física concursado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor Adjunto IV da UFBA. É doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia, membro dos grupos de trabalho Benedictus Spinoza e Filosofia do séc. XVII da Anpof e Prof. Permanente no Doutorado Multidisciplinar de Difusão do Conhecimento, onde orienta vários alunos de Doutorado, lecionando as disciplinas Epistemologia e Seminários de Tese. Possui vários trabalhos publicados sobre a filosofia de Spinoza, além de participações em encontros e congressos de Filosofia da Ciência e Educação. É autor dos livros Os crocodilos guardiões e a Biblioteca da Babilônia: manhas, artimanhas e imposturas acadêmicas, publicado recentemente pela CRV e Deus ou seja a Natureza: Spinoza e os novos paradigmas da Física pela EDUFBA. Dedica-se atualmente a construir uma pedagogia da ciência, inspirada nas filosofias de Einstein e Spinoza..
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