O que significa "humanidade"?
Por
Roberto Leon Ponczek
A espécie humana criou para si um substantivo que denota todo seu
egocentrismo inflado e narcísico: humanidade.
Não se criou nenhum termo equivalente para outras espécies tais como
felinidade, caninidade, reptilidade ou bacteridade. As coisas foram destituídas
de suas propriedades anímicas e quaisquer animismos que lhe são próprios foram
banidos como totemismos primitivos de culturas inferiores, destituindo-se qualquer
vestígio de alma ou espiritualidade nas coisas da natureza. A naturalidade da Natura foi exorcizada. Termos
como pedreidade, terreidade, mareidade, arvoreidade foram suprimidos ou sequer
foram criados nas línguas contemporâneas. Entretanto, pomposamente enchemos a
boca de orgulho ao pronunciarmos a palavra humanidade. Mas o que significa essa palavra? Os fatos depõem contra a prevalência desse termo sobre os
demais. Desde o séc XV a tal humanidade
vem sofrendo uma série de revezes em seu narcisismo egocêntrico. Vejamos alguns
exemplos que depõem contra a presunção de superioridade dessa palavra humanidade.
Sec. XV: o monge polonês
Nicolau Copérnico tira a Terra de seu lugar estático e privilegiado de centro
do Universo, que ocupava desde Ptolomeu e Aristóteles e nos atira num lugar
indefinido no cosmos, onde ficamos perdidos,
orbitando em torno de uma estrela de quinta grandeza, num lugar periférico de
nossa galáxia que, por sua vez, vaga a esmo buscando um lugar no meio de uma
infinidade de outras galáxias maiores e mais importantes que se afastam cada
vez mais rapidamente nos deixando solitários e isolados no espaço-tempo.
Séc XVII: Spinoza. O
humano deixa de ser a criatura feita à imagem e semelhança de Deus que nos
moldou do barro, instilando a alma, através de um sopro, em nossas entranhas, e
que nos concede o divino direito de escolher através de um livre arbítrio entre
o certo e o errado ou entre o bem e o mal. Passamos a ser apenas um modo finito
de existir no meio de uma miríade de outros modos de existência de Deus. E o
próprio Deus, do alto de sua onipotência,
deixa de ser o criador transcendente e voluntarioso, que vigia e
determina nossos destinos, sendo apenas a própria Natureza imanente (Natura) em
sua incessante atividade.
Sec. XIX: Darwin. O auto
proclamado humano deixa de ser a última e mais perfeita das criaturas de Deus, modelada do barro e passa
a ser entendido apenas como uma evolução de formas anteriores e mais simples de
vida como as bactérias. Para Darwin, não passamos de macacos, talvez um pouco
mais evoluídos, que caímos diretamente das copas das árvores para dentro de
automóveis e edifícios!
Séc XIX: Marx. A história deixa de
ser uma sucessão de fatos construídos pela grandiosa intencionalidade do espírito humano passando a ser uma mera
reprodução da divisão de trabalho nas fábricas e de como as forças produtivas
reagem à expropriação e espoliação pelo capital financeiro. A história perde
então seu glamour humanista e
torna-se um reflexo direto da luta de classes. A história é muito mais feita
dentro das fábricas, angares, portos do que em templos, igrejas e catedrais.
Sec XX: Sigmund Freud. O
humano deixa de ser racional e consciente, como o protagonista do Iluminismo do
sec. XVIII, submergindo para dentro de um colossal e desconhecido inconsciente.
A consciência passa a ser apenas a pequena ponta visível do iceberg do
inconsciente do qual a dita humanidade
não consegue se desvencilhar e que lança os humanos pelos caminhos
imprevisíveis de seus mais recônditos desejos, por vezes, pecaminosos e
ignóbeis como a luxúria, a inveja, a gula, a avareza e outros pecados capitais
dos quais não sabemos como escapar e que muitas vezes nos arrasta a um desfecho
trágico. Nas tragédias gregas o protagonista acaba sendo conduzido por forças
que escapam à sua vontade, rumo à consumação do indesejado destino trágico:
incesto, guerra, morte, destruição.
Sec XX: Einstein nos suprime o Espaço-Tempo
absoluto, sensório de Deus e nos coloca num universo no qual espaço e tempo
dependem de um mero observador particular. Não existe mais um tempo único de um relojoeiro do universo,
criador de um mecanismo que funciona como uma ampulheta universal. Cada
observador tem seu próprio relógio que marca horas distintas dos outros e cada
observador tem sua própria régua que marca distâncias distintas das demais.
Cria-se assim uma profusão de tempos e espaços de validade apenas local.
Sec XX: Werner
Heisenberg e Niels Bohr nos suprimem o determinismo de causas e efeitos bem
definidos e nos lançam num cassino de incertezas quânticas onde reina o acaso.
Não se pode nem ao menos saber com total certeza se a cadeira que está à nossa
frente está de fato ali. Quando olhamos para um objeto ele deixa sua posição
original e dispara loucamente com velocidades desconhecidas para qualquer
direção do universo. Não temos sequer a capacidade de saber a posição de um
objeto e ao mesmo tempo saber aonde vai. O conhecimento do mundo físico fica
assim reduzido a meras probabilidades de ocorrência dos fatos.
Séc XX: Arnold Shoenberg
destrói as escalas do Cravo Bem Temperado de Bach e cria uma nova música sem tonalidades
ou escalas que soa quase como uma cacofonia. Os 12 sons da escala cromática
de Bach são permutados aleatoriamente tirando-nos a cômoda sensação de tonalidade. Deixam de
existir os sentimentos da música galante e vitoriosa em tom maior e da música
tristonha e nostálgica em tom menor.
Séc XX: Picasso e Braque
decompõem os humanos e os objetos que os cercam em pequenas células cúbicas
fragmentadas que descrevem a total fragmentação humana. A figura humana fica
assim reduzida a uma coleção de pequenos cubos disformes e de cores descontinuas.
Séc XXI: Benoit Mandelbrot nos suprime a
previsibilidade das leis regidas por fenômenos e equações lineares e nos atira
num emaranhado de complexidades não lineares, onde o todo de tão complexo que é
não pode ser mais decomposto em suas partes. A vida do homem passa a ser tão
imprevisível quanto o clima da Terra. O vôo da borboleta no hemisfério sul pode
desencadear um tsunami no Japão,
assim como um infundado rumor no meio político pode desencadear uma profunda crise
econômica, levando à falência das forças econômicas.
Séc XXI: Deleuze e Guattari
nos percebem imersos em territórios impregnados de rizomas que se alastram
horizontalmente para todas as direções, como raízes de ervas daninhas, entrelaçadas criando uma
malha cerrada e inextricável de conexões em terrenos rizomáticos das redes
complexas, cuja evolução e conseqüência não podemos prever. Deixamos de ser a
humanidade para nos tornarmos vértices e arestas de uma rede complexa.
Onde está o homem Vitruviano
renascentista de Da Vinci, centro geométrico do universo? Orgulho da Criação
Divina?! Onde está o soberbo David de Michelangelo, perfeito em suas formas anatômicas apolíneas? Onde está a dita humanidade iluminista que celebra um contrato social
para o bem comum? Debatem-se diante de
incertezas, relatividades, complexidades e irracionalidades incontroláveis que
os reduzem a um Nada! A auto proclamada humanidade
está se dissolvendo assim como o gelo das geleiras aquecidas pela própria ação
da dita cuja! Porque colocar a humanidade repousando num pedestal acima da
natureza? Que tal esquecermos
a pretensa humanidade supranatural e devolver ao homem a sua modesta, mas
verdadeira, condição de elemento da Natureza, voltando ele a ser tão somente naturalidade?
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