Capa/Cover

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Pensamento em uma frase/ Thought in a sentence ...

"A maioria dos filósofos tentam construir uma filosofia do homem dentro da natureza, enquanto que Spinoza construiu uma Filosofia da Natureza dentro do homem"


"Most philosophers try to construct a philosophy of the man within nature, while Spinoza built a philosophy of Nature inside the man"

Imagens e textos unindo Spinoza a Einstein/ Images and texts linking Spinoza and Einstein

Imagens e textos unindo Spinoza a Einstein/ Images and texts linking Spinoza and Einstein
A aura de Spinoza paira sobre Einstein

Pequena casa em Rijnsburg

Livro de Registro da casa de Spinoza (Visita de Einstein em 1920)

Poema de Einstein para Spinoza/Poem by Einstein dedicated to Spinoza

Wie lieb ich diesen edlen Mann
Mehr als ich mit Worten sagen kann.
Doch fuercht’ ich, dass er bleibt allein
Mit seinem strahlenden Heiligenschein.


Como amo esse nobre senhor,
mais do que expressar sou capaz.
Com sua auréola de esplendor,
Temo, porém que ficará a sós.

(Albert Einstein, Zu Spinozas Ethic)

Poema de Borges para Spinoza/Poem by Borges dedicated to Spinoza


Bruma de oro, el Occidente alumbra
La ventana. El asiduo manuscrito
Aguarda, ya cargado de infinito.
Alguien construye a Dios en la penumbra.
Un hombre engendra a Dios. Es un judío
De tristes ojos y de piel cetrina;
Lo lleva el tiempo como lleva el río
Una hoja en el agua declina.
No importa. El hechicero insiste y labra
A Dios con geometría delicada;
Desde su enfermedad, desde su nada,
Sigue erigiendo Dios con la palabra.
El mas pródigo amor le fue otorgado,
El amor que no espera ser amado.


(Jorge Luis Borges, Obra Poética)































Conversando com Clarice

Conversando com Clarice

Num domingo de sol, saio a passear despretensiosamente pelo calçadão da Atlântica quando avisto na Pedra do Leme uma senhora calmamente sentada na balaustrada, com um livro semi-aberto nas mãos, acompanhada de seu cão “Dilermando”. Aproximo-me e reconheço a judia-ucraniana-pernambucana Chaia Pinkasovna, mais conhecida como Clarice Lispector, que me chama e cochicha no meu ouvido:
“Vida é o desejo de continuar vivendo e viva é aquela coisa que vai morrer. A vida serve é para se morrer dela.”
E depois num tom de humor sarcástico, digno de Woody Allen, me diz: “ter nascido estragou minha saúde”. O que me fez rir compulsivamente: hahahah...

Despedi-me de Clarice quando ela me chama de volta e sussurra em surdina no meu ouvido:
“O que acontece depois de sermos felizes?”- respondo-lhe de pronto que felicidade é uma miragem no deserto: de longe parece um verdejante oásis, mas de perto é apenas areia.
“E depois o que acontece? “- insiste ela. Respondo-lhe, desta feita, em tom filosófico: “Clarice, é necessário vislumbrar sempre novas miragens e seguir adiante caminhando mesmo sabendo que não encontraremos nada além de um infinito e intransponível deserto, situado na tristeza intemporal da existência”. Com um sorriso de soslaio, ela pareceu apreciar minhas divagações filosóficas, o que me encorajou a continuar: “Vivemos apenas enquanto somos capazes de caminhar atrás de miragens”. No que ela de pronto me responde com grande sagacidade: “A única verdade é que vivo. Sinceramente eu vivo! Quem sou? Bem, isso já é querer saber demais!”
Ela me deu um sorriso contido de Monalisa e afastei-me da Clarice de bronze, lembrando-me que a Chaia de carne e osso foi enterrada no Cemitério Israelita do Caju, numa sepultura ao lado da de minha mãe, e pergunto-me se ela viveu o suficiente para morrer de tanto viver…

NEM MARX NEM PLATÃO

NEM MARX NEM PLATÃO

Numa manhã de domingo, eu estava deitado na rede na varanda da frente de minha casa em Jauá, praia no litoral norte de Salvador, meditando sobre uma das proposições da Ética de Spinoza que era uma peça importante para a conclusão da minha tese de doutorado: Ordo et conexio idearum idem est ac ordo et conexio rerum, pensava eu em voz alta: a ordem das idéias é a mesma que a ordem das coisas. Que bela proposição que selava de modo brilhante o isomorfismo e a equivalência entre o mundo da matéria e o mundo das idéias. Nem Platão com sua primazia do mundo das idéias sobre ao mundo imperfeito das coisas e nem Marx com a sua prevalência da matéria sobre as idéias, estavam certos. Spinoza brilhantemente estabelecia a equivalência entre o mundo material e o mundo das idéias.
Absorto nessa reflexão nem me dera conta que meu caseiro Alex havia chegado e me vendo deitado na rede com o pensamento distante exclamou:
- O Sr.hoje tirou o dia pra descansar, né?
- Não, Alex, agora estou trabalhando!
Alex sorriu sem entender bem e foi cuidar do jardim.
Alguns dias depois resolvi aparar, com nosso cortador elétrico, a grama que já estava alta. Nada me vinha à mente senão observar as finas folhas de grama sendo arremessadas a distância pelo aparelho girando em alta rotação. E deliciava-me ver atrás de mim um rastro de grama já aparada que contrastava com a grama alta à minha frente. Com a mente vazia de pensamentos fui novamente surpreendido por Alex que me disse com o intuito de me elogiar:
- O Professor resolveu hoje tirar o dia para trabalhar, né?!
- Não Alex, hoje resolvi descansar!
Cheguei à conclusão que a proposição de Spinoza havia sido demonstrada pelo meu caseiro Alex de forma empírica: “quando pensam que estou descansando estou trabalhando e quando pensam que estou trabalhando, descanso! Nem Marx, nem Platão estavam certos!


MAHLER E CATARSE DAS PAIXÕES

MAHLER E A CATARSE DAS PAIXÕES

Gustav Mahler (1860-1911) foi em vida uma das figuras mais controvertidas do meio musical vienense no final do século passado. Amado e idolatrado por uns, odiado e repudiado por outros, Mahler jamais conheceu o equilíbrio ou o meio-termo, sequer escapando das críticas de sua própria mulher, Alma Mahler, em livro de memórias recentemente publicado no Brasil. Nesta biografia, Mahler é descrito como possuidor de uma personalidade dividida e angustiada, ora frágil como a de uma criança, ora despótica como a de um ditador. Alma Mahler confidencia ainda detalhes de sua relação conjugal com o compositor, afastando definitivamente a idéia de ter sido um mar de rosas. Pelo contrário, para ela, Mahler seria um homem dominador, inseguro e ciumento, que a proibia até de ter aulas de piano e composição, obcecado que estava de ciúmes inexplicáveis por seu professor, um homem baixinho e semicorcunda. Em questões amorosas, o compositor teria, portanto, um comportamento mais para um caminhoneiro do que para um intelectual e aristocrático judeu-germânico.
Mas, desavenças conjugais à parte, Mahler levou às últimas e irreversíveis conseqüências o grande ciclo do Romantismo germânico, fundado por Beethoven no limiar do século XIX. Ninguém na música soube encarnar como ele o espírito de fin de siecle no qual o homem se assume como protagonista trágico de seu próprio discurso: a arte rende-se finalmente à paixão desenfreada, à angustia, à premonição da morte, à depressão profunda e à aceitação sem subterfúgios da falência do existir humano. A personalidade mahleriana só teve paralelos fora da esfera musical: Freud, Schopenhauer, Kafka e Walter Benjamim poderão ser considerados como alter egos do compositor.
É interessante mencionar que Mahler foi inclusive paciente de Freud, curando-se de uma momentânea impotência sexual. Outro detalhe biográfico interessante é que o compositor, para se livrar de sustenidos e bemóis, só compunha na tonalidade de dó maior, cabendo à dedicada Alma transcrever as suas obras para outras tonalidades, tarefa esta que ela abominava e motivo também para sérias queixas.

Argumento Trágico

Mahler nasceu em 7 de julho de 1860, em Kalischt, cidade hoje pertencente à República Checa, mas na época austríaca, de língua e cultura germânicas. Cedo, a sua personalidade foi moldada em meio a conflitos de natureza racial e familiar. Entre checos, era discriminado como pertencente à minoria austríaca, enquanto que entre estes também era segregado como judeu. E até no meio judaico foi também mal vista a sua posterior conversão ao cristianismo, hoje entendida como única forma de o músico galgar as mais altas e cobiçadas posições no aristocrático e reacionário meio musical vienense de fim de século. Um trágico ciclo de mortes e doenças se abateu sobre seus 11 irmãos, e, posteriormente, sobre a sua própria adorada filha, contribuindo para moldar seu caráter de forma a competi-lo a um argumento de tragédia e morte. Esses dados biográficos explicam os constantes sentimentos de depressão, angústia e obsessão pela morte, que se tornaram os elementos fundamentais de sua vida e de sua obra.


Gustav Mahler

Mahler e o fim de Século

Se considerarmos a transição do século XIX para o século XX e se quisermos aí buscar uma personalidade que represente tanto o velho como o novo século, o último delírio da tradição romântica e, ao mesmo tempo, no início de uma nova época, então não podemos deixar de pensar em Mahler. Na verdade, ninguém soube formular de maneira tão efetiva a ambigüidade da passagem do século, descrevendo grandiosamente o passado e expressando, igualmente com toda a clareza, os caminhos do futuro com o século recém-inaugurado.
Confesso-me um ardoroso admirador da vida e da obra deste compositor judeu-austríaco e, portanto, nada mais gratificante do que ouvir a literalmente grandiosa 3a Sinfonia, com sua mais de hora e meia de duração, e maravilhoso Adagietto da 5ª. Sinfonia que ficou imortalizado como fundo musical do filme Morte em Veneza do diretor italiano Luchino Visconti.


O Concerto de Massada

Partindo-se de Jerusalém, cerca de 30km a leste nos separam do Mar Morto, ao longo de uma sinuosa estrada em declive. As placas orientam o motorista para que se mantenha em marcha lenta e os ouvidos denunciam as bruscas variações de pressão atmosférica. A paisagem é quase lunática: montanhas e abismos de rocha calcária sem vestígios de vegetação. Estamos em pleno Deserto da Judéia e a temperatura passa dos 50 debaixo de uma hipotética sombra. Beduínos, camelos, rebanhos de cabras e umas poucas tendas rudes surgem como aparições aflitas, na vastidão do nada desértico.
Depois de um longo trecho em declive permanente, placas metálicas indicam o exato nível do mar, mas, surpreendentemente, a estrada segue num insistente declive cada vez mais acentuado, fato este, corroborado pelos ouvidos que já passam a incomodar. Mais alguns quilômetros descendentes e as primeiras placas sinalizam Jerico ao norte, Mar Morto, em frente e Massada para o sul. Mais alguns tensos minutos e atingimos o ponto mais baixo, seco e quente do planeta: é o vale do Mar Morto, situado 500 metros abaixo do nível do mar, tal qual o fundo de uma grande cratera terrestre. Avistamos, logo em seguida, já em estado de exaltação, o lago salgado da Bíblia.
A grande quantidade de sal diluída nas águas do Mar Morto eleva a densidade a quase duas vezes a da água comum. Arquimedes nos oferece uma fácil explicação do porquê da metade do corpo humano submerso ser suficiente para produzir a sua flutuação, permitindo que as pessoas se “sentem” na superfície da água ou que “caminhem” em suas profundezas com a água ao nível do tórax.

O martírio coletivo

É intrigante que esta tórrida depressão terrestre, com um lago salgado em seu fundo, tenha sido, durante milênios, o anfiteatro dos mais importantes episódios da antigüidade bíblica. Sobre este chão cáustico, coberto de pedras, diversas civilizações se sucederam, alternando períodos de encarniçadas guerras com outros de mística paz.
O ônibus agora bordeja o Mar Morto, ganhando o sul. Alguns oásis de tamareiras sucedem-se para aplacar a infinita solidão do deserto. Vejo à minha direita uma cordilheira misticamente tingida de ouro, à minha esquerda segue insistente o Mar Morto e do outro lado avisto, a olho nu, a Jordânia. As placas começam a avisar a proximidade de Massada, o ponto culminante da cordilheira dourada, onde Herodes, O Grande, constituiu a sua fortaleza, pretensamente inexpugnável.
Massada foi em 135 d.C., pouco depois da destruição do Segundo Templo, palco de uma das mais sangrentas resistências do povo judeu diante das legiões romanas de Adriano. Cerca de mil pessoas, entre homens, mulheres e crianças, viviam no alto do forte, uma vida estóica de estrita obediência à lei da Torah. Eram comandados por Rabi Simão Barkochba (Filho das Estrelas) resistindo do alto, até os limites da exaustão, ao implacável cerco romano. Percebendo a inexorabilidade do destino, a comunidade decide pelo automartírio coletivo. Os romanos assim conquistam Massada sem encontrar prisioneiros.

O concerto

Mais de 18 séculos depois, este hierático cenário, carregado de trágicas reminiscências, servirá como palco para um dos mais importantes concertos realizados na década. A Filarmônica de Israel, alojada entre as ruínas da vetusta fortaleza, tendo à sua frente o maestro indiano Zubin Mehta, executa a “Sinfonia da Ressurreição” de Gustav Mahler.


A “Sinfonia da Ressurreição” (2a) é, juntamente com as Sinfonias 3ª, 5a, 8ª, 9a e a “Canção da Terra”, a mais importante obra de Mahler, na qual este angustiado judeu-germânico divaga sobre o tema que se tornou a obsessão de sua curta vida: a morte enquanto limite físico e metafísico da vida.
A análise que se segue é do próprio compositor, por mim traduzida do inglês, e bem revela a transcendência de seu pensamento e de seu discurso musical.

1° Movimento: Allegro maestoso - Prostrados diante da sepultura de um ente querido, revisamos pela última vez sua vida, sua, luta, seus sofrimentos e suas aspirações. Neste exato e solene momento que comove a alma até as suas profundezas, rejeitamos toda a confusão e a trivialidade do cotidiano, e o coração é comovido por uma voz profunda, geralmente, inaudível durante o tumulto do dia: “É agora ?” “O que é a vida e esta morte?” “Haverá uma continuidade?” “Será tudo um sonho confuso ou há um sentido para esta particular volta e esta particular morte?“ Se quisermos seguir vivendo, urge encontrar as respostas!

2° Movimento: Andante - Fugazes momentos de recordações e reminiscências do amado ser morto, de sua juventude e de sua inocência perdida.

3° Movimento: Scherzo - O espírito da impiedade e da negação dele se apodera. Ele observa o tumulto que o cerca e perde de uma só vez a pureza infantil e a firmeza interior que só o amor permite. Ele duvida de si e de Deus. A vida e o mundo se tornam espectros fantasmagóricos. Uma repugnância em relação à existência derruba-o, como um soco certeiro, levando-o a um choro de desespero.

4° Movimento: Solo p/contralto: Uma cândida voz de fé ingênua soa em seus ouvidos: “Eu provenho de Deus e a Ele com empenho devo retornar”.
5° Movimento: In tempo di Scherzo: Novamente nos deparamos diante das desafiadoras dúvidas e do sombrio humor do final do 1° movimento. A voz se faz suplicante. O fim de toda a vida é chegado. O dia do julgamento se aproxima e o terror do Dia dos Dias, se apossa de nós. A Terra estremece, as sepulturas se abrem e os mortos se levantam para seguir numa interminável procissão. Poderosos e humildes, reis e mendigos, virtuosos e perversos, todos seguem juntos. Um pranto implora por misericórdia e perdão. O pranto cresce em intensidade, perdemos os sentidos e a consciência, com a proximidade do eterno julgamento. Soa a grande chamada. Urram os trompetes do apocalipse. Quando, de repente, num silêncio sepulcral, imaginamos ouvir o canto distante de um rouxinol como uma última reverberação da vida terrena.
Um suave cântico celestial é entoado. “Vocês se erguerão. A Glória de Deus lhes é revelada. Uma maravilhosa luz inunda nossos corações. Tudo é quietude e êxtase! Eis que não há julgamentos, não há pecadores nem virtuosos, nem poderosos ou humildes. Não há tampouco vingança nem recompensa; um onipotente sentimento de amor nos invade e com santificado conhecimento estamos plenos de Sua Presença”.
Esta fantástica profecia musical mahleriana, interpretada por uma das melhores orquestras da atualidade, estrategicamente alojada num santuário bíblico, proporcionou um dos mais importantes eventos musicais da década. O Cd ou o vídeo do espetáculo estão disponíveis para compra no site:

https://www.amazon.com/Mahlers-Symphony-No-Resurrection-Masada/dp/B000MMVAD2

No entanto, o leitor poderá ouvir a 2ª. sinfonia de Mahler, com a Sinfônica de Londres, sob regência do grande Leonard Bernstein no link: https://www.youtube.com/watch?v=Bdc5n562zZg
e imaginar o cenário desolador do Deserto da Judéia, no vale árido entre as margens salgadas do Mar Morto e as colinas da fortaleza de Massada que se erguem como paredões na vastidão do deserto.




DEUS E O GEFILTE FISH



DEUS E O GEFILTE FISH
(Crônica memorial)



Minha mãe Sra. Wanda Goldblum Ponczek (que Deus guarde sua grande alma) era uma mulher bondosa e altruísta, sempre querendo o melhor para mim e de mim. No entanto, como boa yidishe mame[1] era sutilmente autoritária e manipuladora e quase sempre se esquecia de me perguntar o que era bom para mim. Num dia mais frio ou chuvoso, era capaz de me embrulhar todo num papel celofane para que eu não "pegasse um resfriado". Não admitia que eu andasse descalço em casa e profetizava:" você vai se resfriar ou ferir seus pés"- e o pior é que suas profecias sempre se concretizavam... Se eu me recusasse a comer ela mudava de tática e dramatizava fazendo-se de vítima: "preparei essa comida com tanto carinho, como você me faz sofrer". Sra. Wanda era o arquétipo da mãe judia de várias piadas judaicas:



A mãe italiana quando seu filho não come diz-lhe em tom agressivo: "Se voce não comer esse talharim, que fiz para você, eu te mato". Já a mãe judia quando seu filho não quer comer diz-lhe em tom de tragédia: se voce não comer esse gefilte fish[2] que fiz especialmente pra você, eu me mato!” Minha querida yidishe mame seguia exatamente esse padrão.


Quando seus argumentos de convencimento não surtiam o efeito desejado, e eu não a obedecia, ela apelava para o drama e a autocomiseração e quando estes também já não eram suficientes então ela guardava na manga da camisa seu derradeiro e terrível trunfo: “Se você não comer ou não fizer o que te peço (a mãe judia nunca diz eu te ordeno)... vinha então a terrível praga do Egito: “Deus vai te castigar!”

Essa ameaça tinha um efeito avassalador em mim. Eu acabava fazendo com relutância o que ela me "pedia", mas sempre com um terrível medo de Deus. Pensamentos cruéis me perseguiam:

“Afinal quem é esse tal de "Deus "panóptico que tudo vê e julga? Então Ele perceberá que estou fazendo a contragosto o que me foi "pedido" e poderá ainda assim me castigar! Então não só tenho que fazer o que mamãe me "pede" como ainda tenho que mostrar a Deus (que tudo observa) que estou fazendo com prazer tudo aquilo que não quero fazer! Então não só tenho que comer, mas ainda tenho que fingir que estou adorando comer o gefilte fish para que Deus não me castigue, mas Ele tudo percebe e também perceberá minha dissimulação. Estou condenado a grandes castigos!”

Muitos anos depois de minha querida yidische mame ter falecido, tornei-me um estudioso da obra de Baruch Spinoza, um judeu português exilado na Holanda e que me ensinou outro conceito de Deus, bem diferente daquele com o qual minha mãe me assustava: um Deus infinito que se confunde com a própria Natureza e suas leis. “Deus, ou seja, a Natureza, definia Spinoza. Deus seria imanente à natureza e suas supremas leis de transformação e movimento.

E este novo conceito de Deus interno e imanente ao universo e que todos os seus modos de existência (inclusive nós humanos) somos partes Dele, salvou-me da culpa de na infância não querer comer gefilte fish!

Se voce quando criança judia ou cristã ouvia coisas do tipo "Se voce continuar fazendo isso, Deus vai te castigar" (os cristãos aprenderam com os judeus a utilizar o nome de Deus para manipular ou incutir culpabilidade), não tenha medo de Deus, Ele não “quer” que você faça ou deixe de fazer algo. Vejam o porquê:

Pensamento spinozista.

1-Se Deus é infinito e possui infinitos atributos infinitos, porque haveria de ter vontade de que algo seja feito ou deixe de ser feito por você? Afinal Ele não controla, mas É todas as possibilidades da Natureza! Inclusive de voce fazer ou não fazer algo. Se voce fez ou não fez algo é porque seguiu a sua própria natureza de modo de ser de Deus – voce é uma parte Dele.

2- A vontade do corpo ou um desejo da mente é um modo de existir de seres finitos, que querem ou desejam algo que ainda não são ou não têm. Como Deus é absolutamente infinito Ele não quer nada nem deseja algo pra Si, caso contrário seria finito e incompleto como nós humanos.

Com esses conceitos em mente, hoje em dia não só perdi o medo de ser punido por Deus (apenas, como finito que sou, temo com reverência a sua infinita Infinitude) como passei a adorar comer gefilte fish e nas datas sagradas do Judaísmo como o Pessach[3] e o Rosh Há Shana[4], quando nos sentamos todos à mesa, disputo com minha irmã e meus filhos os bolinhos restantes. Minha querida yidische mame sra. Wanda Goldblum Ponczek certamente se orgulharia de mim!






[1] Yidische mame é literalmente a “mãezinha judia” na língua yidische que os judeus falavam no Leste europeu.

[2] Prato típico da culinária judaica consistindo em bolinhos de peixe cozido com uma fatia de cenoura em cima , temperados com raiz forte misturada com beterraba.

[3] Pessach é a Pascoa judaica quando os judeus rememoram a saída e libertação do Egito.

[4] Rosh Há Shana é o Ano Novo judaico que acontece no equinócio de primavera, aproximadamente no mês de setembro de nosso calendário.